sábado, 24 de janeiro de 2009

No Público de hoje

Leitura de uma moção

24.01.2009, Manuel Alegre

A moção de José Sócrates ignora a descrença e insegurança de grande parte do eleitorado

Não, não fui "seduzido" pela moção de José Sócrates. Está quase exclusivamente centrada no Governo. Chega a parecer que o destinatário é o Conselho de Ministros, mais do que um congresso do PS. Diagnóstico pobre. Ignora a descrença e insegurança de grande parte do eleitorado, incluindo o socialista. Tudo é visto pelos olhos do Governo. Pouco se fala do PS, quase nada do papel da sociedade e dos cidadãos.
Não há uma análise da importância da cultura, da língua e da história para um novo modelo de desenvolvimento de Portugal. As questões geo-estratégicas também são omissas. Não se fala de paz nem de guerra, nem das desigualdades no mundo.
A moção abre com uma introdução ideológica sobre o socialismo democrático, reproduzindo muito do que tem sido dito por mim desde as moções que apresentei em 1999 e 2004. Mas nesta moção tudo é dito de uma forma mais atenuada. Embora se reconheça que a crise financeira está a dar lugar a uma gravíssima crise económica e social, não fica claro que é necessário a própria esquerda mudar de atitude e deixar de fazer cedências ao "pensamento único". Não se fala da necessidade de alterar as Grandes Orientações da Política Económica europeia e de garantir a manutenção e reforço dos serviços públicos. E não fica claro o essencial: a questão não é apenas financeira e económica, é do próprio modelo de desenvolvimento e da concepção do papel do Estado e da sociedade.
Refere-se que o Estado deve ser "uma instituição estratégica para a garantia do interesse comum" e que tem um "papel estratégico", com "capacidade reguladora, mas adversário do proteccionismo e do colectivismo", o que repesca, ainda que de forma redutora, a ideia do Estado estratego da moção que apresentei em 2004. Não se assume com clareza o papel interventor (e não apenas regulador) do Estado. O que se propõe nesta parte da moção, de concreto, reduz-se ao reforço dos mecanismos de regulação dos mercados financeiros, incluindo a necessidade de intervenção da Europa contra os off-shores.
Na parte da moção intitulada "A acção do PS", fala-se sobretudo da acção do Governo. E transmite-se a ideia de um partido contente consigo mesmo. Enunciam-se as reformas realizadas. Se algumas delas correspondem de facto a um avanço na sociedade portuguesa (IVG, lei do divórcio, lei da paridade), outras, em meu entender, representam um retrocesso (caso do código laboral) e desencadearam grandes reacções do eleitorado, incluindo o socialista (caso da avaliação dos professores). Outras estão longe de estar completas (caso da administração pública ou da justiça). Não há uma análise aprofundada dos resultados. Mas sobretudo omite-se a necessidade de fazer as reformas com os próprios interessados.
Pese embora as medidas tomadas na agenda social, Portugal continua a ser na Europa o país com mais desigualdades. A moção reconhece finalmente que a recessão se instalou. Para sair da crise apontam-se quatro prioridades: estabilizar o sistema financeiro (20 milhões de euros para garantir o crédito interbancário, mais 4 mil milhões de euros para intervir em bancos como o BPN e o BPP); apoiar as empresas e o emprego (descida do IVA e, nalguns casos, do IRC; apoio ao sector automóvel, à Quimonda e às Minas de Aljustrel; e mais estágios para desempregados e sua inclusão em ONG); reforçar o investimento público (escolas, saúde, energia, banda larga, exportações e agricultura, para além das grandes obras públicas rodoviárias, ferroviárias e aeroportuárias); apoio às famílias e protecção social (salário mínimo, aumento dos funcionários públicos, aumento das prestações sociais).
As medidas enunciadas estão correctas, mas não chegam. Há um desequilíbrio entre os montantes canalizados para salvar a banca e o restante. E, sobretudo, se não se intervier na mudança do sistema, as mesmas causas vão produzir os mesmos efeitos.
Há duas questões essenciais: mudar ou salvar o sistema; saber de que lado se está nos conflitos sociais. As respostas contidas nas "Orientações programáticas" da moção ficam aquém do que seria necessário para uma posição clarificadora. Expurgadas das tensões sociais e culturais que hoje atravessam a sociedade portuguesa, algumas medidas parecem quase "assépticas", como se o Governo as pudesse garantir sem uma base social de apoio forte.
Afirma-se como primeira prioridade o emprego, o que está certo. Referem-se medidas para a reanimação e modernização tecnológica da economia, o que também está certo. Falta, no entanto, definir uma nova estratégia de desenvolvimento e de inovação social. Reafirmam-se as opções conhecidas em termos de obras públicas.
Sobre o tema da "Igualdade", defende-se, bem, que ela exige crescimento económico e políticas sociais redistributivas, mas não há uma palavra sobre "flexi-segurança". Na educação propõem-se 12 anos de escolaridade obrigatória, tal como defendia a moção que subscrevi em 2004. Inclui-se a justiça fiscal, insistindo numa maior progressividade e numa melhor distribuição do esforço fiscal, talvez a medida mais avançada da moção. Propõe-se a garantia dos direitos sociais básicos, em especial na saúde e nos serviços de proximidade. Defende-se o "sindicalismo democrático" e o diálogo, o que nem sempre aconteceu no passado recente.
Para a reforma da democracia, propõe-se a revisão do sistema eleitoral para as autarquias e a reabertura do tema "regionalização". Não há uma palavra sobre democracia participativa nem sobre candidaturas independentes ao Parlamento, o que seria, em meu entender, a grande reforma a fazer. Defende-se, e eu concordo, a igualdade de género, o combate à violência doméstica e o casamento civil de pessoas do mesmo sexo, bem como os direitos dos imigrantes.
Quanto ao futuro do PS, nada de novo. Nada se diz sobre a anomia do partido e a sua quase total governamentalização. Não há nenhuma referência a correntes de opinião como por exemplo a Corrente de Opinião Socialista. A abertura do partido restringe-se às "Novas Fronteiras", o que é mais do mesmo.
Falta na moção uma reflexão sobre o papel do Partido Socialista e a necessidade da sua autonomia, da sua renovação e da sua abertura à sociedade e à vida. Falta uma ruptura com a cultura do poder pelo poder, que leva ao afunilamento do Partido Socialista e à ausência de debate. Falta compreender que este é um tempo de construir soluções alternativas novas, dentro e fora do PS. Falta sobretudo uma nova visão da política, de Portugal e do mundo. Militante do PS. Ex-candidato à Presidência da República

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