domingo, 28 de setembro de 2008

Economia e humanismo

Artigo de Frei Bento Domingues no Público de hoje

Quando só o lucro interessa, a consciência humana corre o risco de ser visitada por um anjo inquietante1.Será verdade que a história humana só avança a partir do que nela existe de pior? Em 1784, Immanuel Kant, ao propor a ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, verificou algo paradoxal. Quando, na grande cena do mundo, se olha para os factos e gestos dos homens - ao lado de algumas manifestações de sabedoria, aqui e ali, isto é, em casos particulares -, no conjunto e em última análise, vê-se apenas um tecido de loucura, de vaidade infantil, muitas vezes até de maldade e de sede de destruição pueris. Fica-se sem saber que conceito se deve fazer da nossa espécie tão convencida da sua superioridade.
Este filósofo pensa, no entanto, descobrir, na marcha absurda das coisas humanas, um desígnio de natureza que usa o próprio antagonismo entre os homens para os conduzir à sociedade através da mediação do direito. Pelos conflitos e guerras, o homem é conduzido a uma sociedade razoável, isto é, regida pelo direito. Supõe que o mal e o negativo, na história, trabalham para o progresso da consciência ética e política.
Talvez seja uma consoladora visão da história do homem, que levou milhões de anos para conseguir ser apenas um lagarto, podre de indiferença, como diria Stig Dagerman. Se as pessoas valem por si, não podem ser o preço a pagar pelo avanço de uma história que as elimina, quando eram elas que desejavam, na vida, encontrar formas de vencer a morte.

2.A ideia de tirar bem do mal é persistente. Pode ir até ao escândalo e ao ridículo. Quando os meios de comunicação social parecem privilegiar tudo o que é negativo, há logo quem diga: sem noticiários carregados de desgraças, o que seria dessas empresas que dão trabalho a tanta gente? O mal de uns é o bem de outros. Por isso, quando não abundam os incêndios, têm sempre ao dispor o recurso aos espectaculares acidentes rodoviários. Neste Verão, não tinham mãos a medir com roubos e assaltos em série. Ao colocarem o país em pânico, abriram, também, uma mina para as empresas de segurança e para a sua lógica.
As notícias internacionais servem-nos todos os males do mundo, naturais ou provocados, mas esses ficam sempre longe. O resultado de falências de bancos e companhias de seguros, nos EUA, acabará, no entanto, por chegar cá. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas dos comentadores que julgam que os dirigentes dos EUA têm sempre razão. Até George W. Bush - responsável pela tragédia do Iraque - é louvado pelo seu pragmatismo e pelas palavras de circunstância na ONU. O capitalismo, por mais selvagem que lhe chamem, tem sempre razão, mesmo na loucura, e sabe premiar, com milhões, os gestores da desgraça.
Dir-se-á que não estou a ter em conta a lógica e os sete fôlegos do capitalismo. Antes de juízos morais, é preciso compreender o seu funcionamento e as suas regras. Seja.

3.Em 1989, Hugues Puel, professor de Economia, na Universidade de Lyon, e especialista em questões de ética económica e de negócios, foi convidado a participar num seminário dedicado ao tema A finança sob o olhar da ética. A questão levantada, aos grandes patrões do capitalismo europeu, era a seguinte: "Até que ponto a procura do lucro, a curto prazo, poderá sobrepor-se a qualquer outra consideração?" Depois de algumas intervenções, o assunto abordado passou a ser este: "Que fazer para não se deixar apanhar?"
Hugues Puel, desconcertado, quando chegou a sua vez, disse apenas: "Mas os chefes de empresa também têm uma consciência." Essa observação gelou a assistência. No dia seguinte, o jornalista do Le Monde, ao narrar o que acontecera, notou o silêncio que seguiu essas palavras e comentou: "Um anjo passa." (1).
Quando só o lucro interessa, a consciência humana tem de ficar fora dos negócios para não ser visitada por nenhum anjo inquietante.
Foi isso que o dominicano Joseph Lebret e companheiros perceberam ao fundar, em 1941, a associação Économie et Humanisme. Como o nome indica, procuravam promover uma economia ao serviço do ser humano, numa adaptação contínua ao contexto social. Essa associação conservou uma vitalidade que espanta muitos observadores da sociedade e do mundo económico. A sua história - na Europa e sobretudo no Terceiro Mundo -, durante a vida do padre Lebret, um grande profeta do século XX, está rigorosamente feita e publicada (2). Économie et Humanisme é um movimento de intervenção, no campo económico e social, com uma forte dimensão espiritual. O padre Lebret teve um papel determinante na elaboração do documento do Vaticano II A Igreja no mundo contemporâneo. O Papa Paulo VI encomendou-lhe a preparação da encíclica Populorum Progressio, que apareceu, em 1967, um ano depois da sua morte.
A humanidade nunca foi tão rica e tão pobre ao mesmo tempo. A pergunta que importa fazer tem dois mil anos: o ser humano é para a economia ou a economia para o ser humano?
(1) Hugues Puel, Économie et Humanisme dans le mouvement de la modernité, Paris, Cerf, 2004, p. 152.
(2) Denis Pelletier, Économie et Humanisme. De l'utopie communautaire au combat pour le Tiers-monde. 1941-1966, Paris, Cerf, 1996

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Magalhães: como funciona e para que serve?

Artigo de Vieira de Carvalho no Público de hoje

A prioridade deve ser dada ao uso crítico da tecnologia. O computador deve ser um instrumento de aprendizagem activaHans Magnus Enzensberger chamou à electrónica a "indústria das consciências". Habermas introduziu o conceito de refeudalização da esfera pública: a competência meramente aclamatória a que os mass media reduzem a cidadania. Adorno referiu-se ao "véu tecnológico" como uma nova e mais subtil forma de ideologia. Os três convergiam no mesmo diagnóstico da evolução social recente na Europa (em especial, na Alemanha) e nos Estados Unidos.
Estávamos no início da década de 60, ainda longe do uso generalizado de computadores pessoais, dos telemóveis, dos iPods, outras plataformas móveis e, é claro, da conexão universal em rede. Sobretudo, não era previsível a velocidade cada vez mais acelerada com que cada avanço nas inovações tecnológicas iria tornar obsoletos os avanços imediatamente precedentes - a reprodução incessante do novo, como imperativo da competitividade e condição da permanente corrida ao consumo. Em nome do crescimento económico (uma espiral cumulativa sem termo à vista).
O "véu tecnológico" manifestava-se (palavras de Adorno, em 1964, publicação póstuma em 2008) "no quantum em libido ou paixão que as pessoas investem na técnica pela técnica, e não pelas finalidades que ela serve". Algo que hoje ganha tanto maior acuidade quanto mais fugaz ou efémera se torna, paradoxalmente, a relação de co-dependência entre a pessoa e a coisa possuída. Mal esta se constitui na contemplação maravilhada do "como funciona", e logo parece impor-se a mudança de parceiro. As novas funcionalidades expulsam da competição as anteriores, desterrando para o museu das velharias inúteis o que ainda há pouco era considerado indispensável. A embriaguez do "como funciona" subalterniza o "para que serve", que não chega a ser aproveitado na proporção das reais necessidades de cada um.
Quem possui o quê: a pessoa, o computador? Ou o computador, a pessoa? É a questão do uso crítico da tecnologia colocado na ordem do dia pelo Magalhães.
A distribuição de computadores às crianças dos seis aos 11 anos, como instrumentos de escolaridade, constitui uma mudança de paradigma na aprendizagem. As potencialidades que oferece para o desenvolvimento cognitivo da população escolar são evidentes. Mas, para serem exploradas ao máximo, importa não subestimar um elemento de valor acrescentado (entre outros já considerados): software pensado de raiz. O que pressupõe a produção de conhecimento novo a partir do cruzamento de problemáticas distintas. As competências a mobilizar, no âmbito de projectos de investigação interdisciplinares, viriam, respectivamente: das áreas das Tecnologias da Informação, Engenharia de Sistemas ou Inteligência Artificial; das áreas da Psicologia, Pedagogia, ou da Educação em geral; e das áreas dos "conteúdos" (língua, cultura, artes ou expressões literárias e artísticas, Matemática, Ciências da Natureza, Saúde, Ambiente, etc.).
Qual seria aqui a prioridade? Precisamente o estímulo ao uso crítico da tecnologia. Isto é: o desenho de modelos de interacção que incentivem as crianças, desde o início, a compreender e dominar o computador como um instrumento de aprendizagem activa, expressão e descoberta individuais, invenção, imaginação, produção de conhecimento, diálogo intercultural e abertura ao mundo. Modelos que suscitem no utilizador a interrogação e a experimentação criativas. Onde, enfim, o "como funciona" lúdico - programado segundo a especificidade de cada "conteúdo" - se converta em "para que serve" lúcido. Professor universitário

quarta-feira, 28 de maio de 2008

O ciclo único, a pedagogia única e o poder único

De Santana Castilho, no Público de hoje

Um só professor a ensinar Português, Matemática, História, Geografia, Ciências da Natureza e o que mais se verá?As 135 páginas do relatório apresentado ao CNE (Conselho Nacional de Educação) sobre o estudo relativo à educação das crianças dos 0 aos 12 anos foram escritas por académicos ilustres. Constituem por isso uma leitura estimulante, a muitos títulos. Mas no âmbito desta coluna apenas fará sentido tratar a proposta mais polémica que dele emana, a eventual fusão dos 1º e 2º ciclos do ensino básico, fugindo, quanto possível, da complexidade dos estritos registos académicos e considerando, também quanto possível, as percepções mais comuns dos que estão no terreno. No relatório refere-se um "contraste violento e repentino entre o regime de monodocência do 1º ciclo e o regime de pluridocência do 2º" e sugere-se que a fusão dos dois obstaria a "transições bruscas", inconvenientes para as crianças. Coerentemente, propõe-se um professor único para os dois ciclos, ainda que eventualmente coadjuvado por outros (dois ou três professores na mesma sala, ao mesmo tempo, a dar matérias diferentes, numa animada e pós-moderna balbúrdia pedagógica?). Ora sucede, como é público e conhecido, que um professor generalista, concebido para leccionar até ao 6º ano da escolaridade básica, já está a ser formado, infelizmente, na sequência do Decreto-lei nº 43/2007, de 2 de Fevereiro. Termos em que este estudo veio mesmo a calhar: valida pela voz autorizada de académicos conceituados a temeridade do Governo. Quanto à natureza brusca da passagem do 1º para o 2º ciclo e aos implícitos inconvenientes que daí resultam, procurei e não encontrei no estudo fundamentação suficiente. Outrossim, o que as estatísticas mostram é que o insucesso escolar é bem mais significativo na transição do 2º para o 3º ciclo. Com efeito, os resultados globalmente obtidos pelos alunos do 5º ano (o da transição brusca) são bem melhores que os conseguidos no 7º ano (altura em que os alunos já estão adaptados ao regime da pluridocência). Mas, mais que isso, teremos todos dificuldade em aceitar este cansativo fado dos traumas das criancinhas. Numa sociedade em que o paradigma imposto, quase como condição de sobrevivência, é o de estarmos preparados para nos adaptarmos e mudarmos constantemente, receamos que, aos 9/10 anos de idade, a passagem do regime de classe para o regime de disciplinas autónomas traumatize as crianças? E a deslocação bruta, forçada, de crianças de 6 anos do seu ambiente habitual para escolas distantes e grandes, por jornadas de autêntico "trabalho" infantil que superam em duração o legalmente permitido aos trabalhadores adultos, com dezenas de quilómetros andados para lá e para cá, deixará incólumes corpos e espírito das indefesas criaturas? Quando a alegada monodocência do 1º ciclo é, aliás, falsa, dado que na maioria das escolas as crianças já têm vários professores, para além do nuclear (educação física, expressões e inglês)?A verdadeira consequência, a importante, em minha opinião, reside num novo decréscimo do conhecimento que tal sistema originará para as crianças. Um só professor a ensinar Português, Matemática, História, Geografia, Ciências da Natureza e o que mais se verá? O peso da especulação pedagógica em detrimento das tradicionais áreas do conhecimento tem conduzido as crianças portuguesas por tristes veredas de infantilização. O proposto será uma boa achega para a promoção desse pernicioso percurso e para mais uma drástica redução do número de professores em actividade, com a natural e consequente redução significativa dos custos da provisão do ensino básico a que o Estado está obrigado. O cinismo com que o Ministério da Educação reagiu à proposta, dizendo que é prematura a fusão do 1º com o 2º ciclo do ensino básico, é confrangedor, sendo certo que não há muito tempo propôs, ele próprio, isso mesmo e lançou, em conformidade, a já referida formação de professores para os dois ciclos, em regime de monodocência. Mas sob o manto diáfano desta mal disfarçada inocência está o ardiloso avanço, com a necessária preparação da opinião pública, de mais uma investida para poupar cobres, em pura lógica imediatista. Que se lixem as crianças e a lei de bases que claramente proíbe a fusão! A maioria absoluta, o desastre de Bolonha e, agora, o CNE são música celestial para os ouvidos dos absolutistas que se sentam na 5 de Outubro. Professor do ensino superior

domingo, 9 de março de 2008

No Público de hoje

Política educativa: uma estranha coerência
José Madureira Pinto - 20080309
A obsessão "gestionária" do Governo no modo de conceber a actividade docente tem o seu quê de anacrónico. Com conteúdos e qualidade muito diversos, as medidas de política educativa do actual Governo manifestam, em qualquer caso, um princípio unificador bastante preciso: retirar direitos ("privilégios", no entendimento dos responsáveis governamentais), poder e auto-estima aos professores dos ensinos básico e secundário. Intrigado com esta estranha coerência, terminava José Gil a sua coluna na Visão de 21 de Fevereiro com a seguinte interrogação: "Nisto tudo, porquê tanto ódio, tanto desprezo, tanto ressentimento contra a figura do professor?"
Procurando contribuir para responder à pergunta, direi que a atitude governamental em causa, para se poder apresentar com tanta convicção e coerência, teve de basear-se em alguns equívocos, que passo a tentar enunciar.
O primeiro equívoco consiste em admitir que a sociedade portuguesa oferece aos jovens condições homogeneamente favoráveis de acesso e de relacionamento com a escola, tornando por isso fácil e padronizável a acção pedagógica. Partindo deste equívoco, o corolário político extraído pela actual equipa ministerial foi o de que os alegados maus resultados obtidos no sistema educativo português são directamente imputáveis aos seus protagonistas mais salientes: os professores e os órgãos de gestão das escolas.
A verdade é que, para sustentar tal posição, é preciso acreditar que: a sociedade portuguesa não é marcada por fortes desigualdades económico-sociais; é estatisticamente irrelevante a proporção de crianças e jovens a viverem em situação de pobreza ou em famílias com horizontes de emprego precários; não há défices de instrução e de literacia muito elevados entre a população adulta, portanto entre os pais de muitos alunos que hoje frequentam a escola; não há falta de tempo nem de preparação de muitos encarregados de educação para o acompanhamento escolar dos filhos; não há espaços residenciais estigmatizados nem formas de socialização desviantes a eles associadas; não há diluição de factores de motivação para o trabalho escolar induzidos pelo consumismo e por ilusões de ascensão social difundidas no campo dos media e das indústrias culturais e de lazer; não há carências nem falta de coordenação entre instituições de apoio social às populações e grupos escolares mais desfavorecidos; não há desmotivação dos jovens para o prosseguimento de estudos por falta de perspectivas profissionais valorizadoras das aprendizagens escolares; não há pressão para a saída precoce da escola em direcção a postos de trabalho precários e muito pouco qualificados (em Portugal ou até em Espanha); etc.
O segundo equívoco é, em grande medida, uma projecção do primeiro no modo de conceber o quotidiano concreto das escolas e desdobra-se, também ele, em múltiplas crenças: os equipamentos escolares têm sempre grande qualidade; as turmas reais têm a dimensão que lhes atribuem as "médias" oficiais; é estável, transparente e coerente a malha de regulamentação das actividades lectivas de iniciativa governamental (raramente avaliadas, aliás) a que os professores têm de se adaptar; não há alunos com dificuldades acumuladas nas turmas; há acompanhamento permanente a esses alunos por parte de equipas pluridisciplinares devidamente preparadas e estáveis; há muito tempo disponível no horário dos professores para se relacionarem com os colegas, para prepararem conscienciosamente as aulas e para se encontrarem consigo próprios no quadro de estratégias de autoformação consistentes e estimulantes; a sala de aula é um espaço de transmissão da mensagem pedagógica sem resistências nem dissidências por parte dos receptores, e onde a indisciplina é pontual e passageira; não há sofrimento nem forte incidência de burnout entre os docentes; etc.
Assumidas estas ficções sobre a sociedade portuguesa e as suas escolas concretas, basta que se assuma também o pressuposto (individualista/subjectivista) segundo o qual a acção dos professores depende exclusivamente de qualidades e intenções que lhes são "próprias", e não sobretudo, como acontece na prática social em geral, da estrutura de limitações e oportunidades com que se confrontam - basta que se assumam aquelas ficções e este pressuposto para se começar a acreditar, e depois a jurar, que os problemas da escola portuguesa começam e acabam na inabilidade, preguiça, "corporativismo", desleixo, desinteresse dos professores, responsabilizando-os publicamente por isso.
Foi esta a armadilha intelectual em que se deixou cair a equipa ministerial, quase desde o momento em que iniciou funções. Daí à hostilização sistemática dos professores, habilmente mediada pelo ataque às suas estruturas sindicais, não foi senão um passo. (...) Numa altura em que os teóricos da organização e gestão empresarial defendem cada vez mais a importância do envolvimento e participação criativa dos trabalhadores (encarados como actores "reflexivos"), desconfiando dos que teimam em racionalizar e controlar os comportamentos no espaço do trabalho sem ter em conta a pluralidade e riqueza das suas dimensões humanas, a obsessão "gestionária" do Governo no modo de conceber a actividade docente (actividade relacional por excelência) tem o seu quê de anacrónico - e pode vir a ter consequências muito negativas, se não forem revistos alguns dos seus fundamentos e modos de concretização. Sociólogo; professor da Universidade do Porto