quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

Artigo no Público de hoje

Nada de novo sobre a terra
José Pacheco Pereira

«Durante dias arrumei velhos papéis dos últimos anos do século XIX e primeiros do século XX, que popularizavam duas correntes político-ideológicas, próximas, mas distintas: o anarquismo e o sindicalismo revolucionário. Junto com esta colheita vem sempre outra por proximidade, dos tempos e das pessoas, propaganda republicana e panfletos anticlericais.
Estes papéis são facilmente reconhecíveis para quem tenha treino de livros velhos e de alfarrabistas. Pequenos, muitas vezes mais pequenos do que um bolso, raras vezes chegando às trinta páginas, num papel mau, com capas tão finas que se rasgam com muita facilidade. Tinham que ser baratos e eram feitos para pessoas que não estavam muito habituadas a ler e quase não tinham cultura formal. As ilustrações são escassas e rudimentares, mas a iconologia é típica. Retratos dos mestres, gravuras ou zincogravuras, com Tolstoi, Bakunine, Reclus, Hamon, e várias figurações que têm como centro ou o horizonte o Sol.
Eram fiéis a séculos de imaginário bíblico, mesmo sem o perceberem. Eles não sabiam que o Sol que lá aparecia era o mesmo Sol que ilustrava as capas dos livros de catecismo, e onde no catecismo ocupava o lugar de Deus, para eles estava o Futuro. Aquele Sol era o Futuro, ou seja, o sentido inscrito na História, e as personagens que o rodeavam, o apontavam, para ele caminhavam eram figuras masculinas - os homens sempre mais altos do que as mulheres, os homens levando atrás de si a família, a mulher e os filhos, mas sempre os homens como actores - que caminhavam do mundo de miséria quotidiana para a Jerusalém Libertada, para a Nova Jerusalém. De Babilónia para Jerusalém, era todo o programa da libertação.
A "emancipação" dos grilhões do presente, do trabalho escravo, fazia-se quase que magicamente - a iconografia militarizada e violenta é uma contribuição posterior do bolchevismo - pela "união", pela solidariedade e pela luta. Meia dúzia de frases que hoje nos parecem ingénuas, mas foram terrivelmente poderosas, ilustravam como dísticos esta literatura: "um por todos, todos por um", "paz entre nós, guerra aos senhores", "o homem livre sobre a terra livre", "quem não trabalha não come", "proletários de todo o mundo uni-vos!".
No seu conjunto um pouco heteróclito, propaganda anarquista, sindicalista, pacifista, antimilitarista, antitouradas, vegetariana, neomalthusiana (ou seja, a favor do controlo dos nascimentos), homeopática, espírita nalguns casos, era a contracultura popular na época, que circulava entre um pequeno mundo de artesãos urbanos, tipógrafos, cinzeladores, marceneiros, canteiros, fragateiros, e mais meia dúzia de profissões já extintas. Era lida também por estudantes e intelectuais, quase sempre os mais remediados e desenraizados, vivendo o mundo mítico das mansardas, escrevendo versos e sonhando com uma versão social da Dama das Camélias no meio das chamas da revolução. Aquilino, Nemésio, Ferreira de Castro leram e ocasionalmente escreveram literatura próxima destes panfletos.
Quando olho estes livrinhos frágeis - À Mocidade, A Evolução Legal e a Anarquia, Necessidade da Associação, A Conquista do Pão, No Café, Entre Camponeses, A Sociedade Futura e tantos outros -, endireitando as páginas dobradas, consertando os rasgões, protegendo-os com um plástico qualquer do Futuro que os envelheceu, não posso deixar de perguntar o que sobra de todos eles depois de cem anos de "guerra total" que nos endureceu face a todas estas ingenuidades. Mas mesmo que nada no nosso mundo do século XXI se pareça com o mundo das tabernas revolucionárias de Alcântara, não consigo deixar de ter uma forte sensação de déjà vu. Isto continua tudo por aí, quase da mesma maneira, o mesmo pensamento, a mesma visão, mesma pulsão igualitária, niveladora, os mesmos gestos simples e mágicos de que se espera o milagre da Revolução, a mesma ilusão de um mundo primitivo e feliz, sem egoísmo e sem maldade a não ser nos "de cima", nos "senhores". Este mundo está vivo e bem vivo na Internet, na Rede, no ciberespaço. Nada se cria, tudo se transforma.
Nos dias de hoje todas as teorias da História, que sofreram a crise das teleologias, os herdeiros de Hegel, Marx e Teilhard de Chardin, reconverteram-se em utopias tecnológicas, que mais do que descritivas são programáticas, dizem-nos, com a felicidade de um sorriso, não só como as coisas vão ser assim, mas também como devem ser assim. Gente culta e inteligente, génios da tecnologia, que não sabem muita história, não escapam à ideia de que as novas tecnologias permitirão uma engenharia social poderosa, que nos tornará mais solidários (em Rede), mais poderosos na igualdade (as ideias niveladoras fazem o seu caminho com a noção de "empowerment"), num mundo que não precisa de mediações, não necessita de delegar poderes, mais felizes porque interagimos numa terra sem propriedade (os átomos dissolvem-se nos bits e estes não tem dono).
Do Linux, e de todo o software grátis e "livre", a mágica palavra (lembram-se de "o homem livre sobre a terra livre"?), à saga teórica e prática contra os direitos de propriedade, que institucionalizou o velho "roubo" de que falavam Proudhon e Preobajensky; da "town hall democracy" à ideia de construir um mítico agora em que todos podem votar sobre todas as questões em tempo quase real, não sendo necessário nem um parlamento, nem um governo, podendo ser este apenas um grupo de tecnocratas executores das decisões da "comuna"; da Wikipédia, enciclopédia colectiva dos homens comuns que não precisam de "senhores", em que mais importante do que o rigor dos artigos é o facto de serem feitos por todos, onde são as massas que "fazem" a ciência (como se diz num comentário num blogue: "A wikipédia não é mesmo uma enciclopédia de autor. Prefiro assim. Prefiro que seja validada a opinião da generalidade, daqueles que verdadeiramente fazem algo pela disseminação de cultura. O conhecimento absoluto e pessoal está condenado com este novo critério editorial") ao "jornalismo dos cidadãos", em milhares de pequenos passos, a Revolução passou para a Rede e aí dissolve os poderes tradicionais. Passou também a Contra-Revolução, mas isso é toda uma outra história. Historiador»

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Hoje, no jornal O Público

«Educação: uma oportunidade perdida

A participação dos portugueses em matéria de cidadania activa reduz-se ao mínimo possível e acaba invariavelmente por resvalar para o conformismo e resignação. O país não precisa apenas de reformas na administração pública; não precisa apenas de combater o défice; o país precisa de uma verdadeira revolução das ideias, o país precisa de cidadãos activos que se interessem e que pensem sobre as grandes causas. Todavia, a ausência de espírito crítico e a inexistência de um debate de ideias constituem paradigmas de uma democracia que ainda se encontra longe da sua consolidação. Além disso, o problema agrava-se quando se verifica que não se está a fazer o suficiente para inverter esta tendência, muito pelo contrário - as novas gerações estão condenadas ao mesmo destino.
A educação teria a este nível um papel absolutamente determinante; contudo, a escola está impregnada por uma lógica que propagandeia a falta de rigor, a irresponsabilidade e a ausência de valores. Vive-se num contexto onde impera a indolência. Faz-se a apologia de tudo o que não exija muito esforço, em particular tudo o que evite o recurso a qualquer tipo de exercício mental - esta é a lógica que muitos acham adequada para servir a educação. Toda esta situação se agrava com o facto de se viver num ambiente onde se dissemina endemicamente a vacuidade. Desde logo, nas escolas o rigor e a exigência são palavras desprovidas de sentido, a própria filosofia da escola promove subrepticiamente a falta de rigor e a irresponsabilidade. A escola tenta atabalhoadamente adaptar-se a um mundo global em constante mutação, respondendo-se assim improficuamente às novas realidades sócio-económicas e multiculturais de um ensino massificado.
Assistimos a acerbas discussões sobre educação e sempre que se fala em educação descura-se esta questão fundamental: a escola deixou-se encantar pelo politicamente correcto, não se entusiasma com o espírito crítico ou com a refutação de ideias. Desta forma, as escolas deixam de ser apenas depósitos de crianças e jovens e passam a ser também fábricas de cidadãos desinteressados, amorfos e incultos. Porquanto, está-se a criar uma sociedade onde não se valoriza a ideia e o pensamento; esquece-se que é assim que tudo começa... com uma ideia!
Na verdade, está-se a perder uma iniludível oportunidade para se acabar com este deserto de ideias e de vontades que se chama Portugal; a escola deveria ter nesta matéria um papel central. É impreterível que o cidadão tenha um papel preponderante num Estado democrático, e a escola deve ter como missão primordial a valorização do papel do cidadão activo, crítico e responsável. Ora, esta é uma oportunidade que não pode ser contemplada com a habitual displicência. Se nada for feito para contrariar este défice no plano da cidadania activa, teremos um país onde imperará a resignação, a irresponsabilidade e o egocentrismo. Este contexto desfavorável à democracia constitui, contudo, terreno fértil para a demagogia e para a manipulação. »
Ana Gonçalves, Arrentela-Seixal