(No Público de hoje)
«O MUNDO NÃO É UM INFANTÁRIO
frei Bento domingues, o.p.
1.Não é preciso recorrer à clarividência de Freud para ver que o mundo não é um infantário.
Num infantário normal está tudo preparado para dar conforto, segurança e prazer às crianças, mas só nos sonhos de um paraíso perdido é possível ver o mundo, fruto do azar ou de um desígnio, organizado para nosso prazer.
Esta observação vem a propósito de duas grandes notícias da passada semana: o futuro da União Europeia e o da guerra no Iraque.
A União Europeia não nasceu para ser um jardim de delícias como, às vezes, se imagina. As novas gerações devem saber que foi o fantasma de duas terríveis guerras mundiais, no espaço de 20 anos, com dezenas de milhões de vítimas, que esteve na origem da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951) e dos Tratados de Roma (Comunidade Económica Europeia e Comunidade Europeia da Energia Atómica), assinados em Março de 1957.
Dominados pelas dificuldades e desencantos no processo da construção da União Europeia, não reparamos no alcance civilizacional desse acontecimento económico de há 50 anos. Teve, no entanto, o mérito incomparável de manter viva a convicção de que as guerras não resolvem nenhum problema. Só os multiplicam. Diz-nos que a solução para os conflitos não se deve procurar na guerra, mas na cooperação. O apelo às armas, que se ouve por todo o lado, vem do terrorismo e do combate terrorista ao terrorismo. Serve, apenas, para alimentar o círculo vicioso da violência e os negócios associados à indústria bélica.
Apesar de todos os cépticos, meio século depois, já são 27 países a verificar que a União Europeia, a que aderiram, não é nem um infantário - um lugar de vantagens sem deveres nem encargos - nem uma tarefa impossível, embora pouco e mal explicada aos cidadãos. É um projecto económico, social e político extremamente difícil, para realizar a união na diferença dos seus povos e para não regressar às velhas rivalidades entre Estados. Terá de contar sempre com soluções de compromisso. Os europeus não pertencem a uma só cultura, a um só clube político e a uma só religião. É normal que as dificuldades da caminhada, com ritmos tão diferentes, provoquem miragens e desilusões. Sem ter ainda resolvido os problemas da sua Constituição, para enfrentar os desafios da globalização económica, a questão energética e as alterações climáticas, para lançar pontes em todas as direcções, especialmente com África, a União Europeia está a reconhecer que precisa de um novo folgo e de novos impulsos.
2. A Europa não é só uma questão interna. No diálogo ibérico, no contexto europeu e mundial, entre Mário Soares e Federico Mayor Zaragoza, ex-director-geral da UNESCO (1), o grande desejo é que a Europa seja, para o mundo, "um farol de democracia", favorecendo, em toda a parte, a interlocução, e de um modo muito especial com os EUA, sem qualquer seguidismo, para se ir forjando uma nova visão, em que a palavra substitua a força e em que se recupere um rumo baseado nos direitos humanos, no pluralismo e na justiça. Acontece que as democracias nos países mais adiantados - América do Norte e a União Europeia - estão, desde o colapso mundial do comunismo, a transformar-se, paulatinamente, em plutocracias... O poder real é o poder económico-financeiro, e esse não é regido por regras democráticas. Não basta repetir que a União Europeia está, desde há anos, sem uma política externa autónoma e concertada entre os seus membros e incapaz de avançar para uma reforma das suas instituições. Vetado o Projecto de Constituição, pela França e pela Holanda, é mantida pela burocracia, sem um rumo seguro que a levaria, por contágio, a ter um alcance democrático em todo o mu ndo.
Mas será que o mundo precisa da União Europeia? Precisa, e por várias razões: para que a grande recomposição geoestratégica em curso, num mundo globalizado e sem preocupações éticas, possa ser equilibrada, para que a política venha a comandar a economia (e não o contrário), para que as grandes causas humanistas - a luta pela paz e pelo direito contra a pobreza e em defesa do planeta ameaçado, pelo acesso à educação e ao bem-estar, sem discriminações - possam tornar habitável um mundo de conflitos.
3. É evidente que o mundo não é um infantário, mas não tem de ser uma selvajaria. Hoje, é bastante consensual que a desgraça em que o Iraque foi transformado resultou de uma articulação de várias mentiras e da confiança no poder das armas para impor um regime colonial. Na passada quinta-feira, a RTP2 transmitiu o retrato de um pelotão de soldados norte-americanos feito na devastada cidade de Fallujah, no lraque, durante o Inverno de 2003, intitulado, "Ocupação: a Terra dos sonhos". Um iraquiano tentava explicar a um grupo de soldados: a América pode ir à Lua, pode fabricar armas nucleares, não pode produzir um povo. Nós não podemos aceitar o colonialismo.
Como foi possível que os EUA, com uma democracia exemplar, com as melhores universidades do mundo, com os melhores institutos de investigação em todos os domínios, com os melhores centros de informação, tenham desencadeado, no Iraque, a maior selvajaria dos últimos tempos?
A grande ameaça vem da associação do poder do dinheiro com o poder das armas e com o poder dos grandes meios de comunicação transformados em publicidade. Uma pequena minoria, senhora do dinheiro e das armas, enganou o povo americano.
Segundo o PÚBLICO (11.01.2007), Condoleezza Rice acaba de anunciar a criação de um novo Prémio de Diplomacia, a conceder anualmente a uma empresa, instituição académica ou outra organização não-governamental e mesmo a indivíduos que se destaquem na promoção da imagem dos EUA em outros países, através de iniciativas de "compreensão intercultural". O galardão, que recebeu o nome de Benjamin Franklin, pretende motivar aquelas organizações a desempenharem um maior papel na diplomacia, no momento em que a imagem do governo norte-americano tem vindo a deteriorar-se a nível global e, especialmente, no mundo árabe e muçulmano, desde a invasão do Iraque.
Talvez não fosse pior gastar esse dinheiro com uma boa equipa de psiquiatras que se ocupassem da sanidade mental da administração Bush.
(1) "Um Diálogo Ibérico no
Contexto Europeu e Mundial", Lisboa, Temas e Debates, 2006. »
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